domingo, outubro 21, 2007

TEXTO COMPLEMENTAR: A CRUZADA DAS CRIANÇAS


Quando o verão de 1212 despontou na Europa, milhares de meninos e meninas fugiram de casa para libertar Jerusalém.
A Igreja era contra; tudo indicava que fracassariam. Mas elas tinham fé.
De todas as cruzadas empreendidas pela cristandade, a das crianças foi a mais incrível e a mais trágica. (...)

Os numerosos pregadores itinerantes, os bispos e todos os sacerdotes que orientavam os serviços do Pentecostes procuravam explicar por que os exércitos cruzados não haviam sido vitoriosos. Certamente usaram os argumentos habituais da época: as calamidades, pestilências, carestias, saques eram sinais da cólera divina para punir a humanidade pecadora. A essa altura das homilias [2] , as crianças devem ter pensado: “Se as cruzadas dos grandes fracassaram, certamente foi por causa de seus pecados. Mas Deus ajudará as crianças puras e inocentes. Ele realizará o milagre de abrir o mar diante de nós, permitindo-nos libertar Jerusalém sem combate e converter os infiéis”. Pretenderam alcançar a Cidade Santa em espírito de paz e de alegria. Crônicas da época atestam que essas eram, realmente, as idéias das crianças. (...)

Étienne, um menino pastor de Cloyes, pequena aldeia francesa, começou a pregar a necessidade da cruzada, entre seus companheiros. Isso está documentado. Presumivelmente, o mesmo tenha acontecido com Nikolaus, de Colônia, outro menino, que chefiou a expedição alemã.[2] A fé moveu os jovens – eles deveriam ter em média entre 7 e 14 anos, meninos e meninas –, mas também é preciso considerar a precocidade dessas crianças, que cresciam livres até os sete ou oito anos e, depois, abruptamente, eram lançadas num duro regime e trabalho. Os pobres iam para o pastoreio, as tarefas agrícolas e domésticas, os ofícios artesanais; os ricos, para o aprendizado das armas e da rígida disciplina. Todos sofriam castigos corporais. Para muitos deles, a cruzada era uma fuga para a liberdade.

Assim, no norte da França, e logo depois na Renânia, o espírito da cruzada infantil explodia quase simultaneamente, difundindo-se como uma epidemia pelas regiões vizinhas. As crônicas falam em “multidão”, em “incontável exército”, mas há cifras, embora exageradas e mesmo arredondadas, de acordo com o hábito medieval: 30 mil teriam seguido Étienne; 20 mil, acompanhado Nikolaus. Partiram cantando. O povo ignorante, desconhecendo a geografia e disposto crer no milagre, favorecia as crianças. Mas houve quem pretendeu detê-las: o próprio Inocêncio III e quase todo o clero, o rei Filipe Augusto da Frença e quase toda a nobreza.

As crianças guiadas por Nikolaus partiram em meados de julho e chegaram a Gênova em 25 de agosto. O mar não se abriu e a cidade os repeliu, temendo que o preço dos alimentos aumentasse demais diante da demanda da multidão. Alguns cruzados-mirins tomaram o caminho de volta; outros foram a Roma pedir auxílio ao papa. Nada obtiveram. E o povo, que ajudara os jovens alemães na ida, convencia-se agora com os argumentos do clero: a cruzada fora inspirada por Satanás. Instigada contra os meninos, a população os abandonou à fome e à sede; as meninas foram violentadas e vendidas para prostíbulos; pouquíssimos conseguiram voltar pra casa.

Os seguidores de Étienne dirigiram-se primeiro a Paris: queriam a ajuda de Filipe Augusto. O rei passou a responsabilidade aos clérigos, que eram totalmente contrários à cruzada. Com seu apoio, o rei ordenou que as crianças voltassem para casa. Em vez de obedecer, Étienne conduziu seu exército para Marselha, onde o mar tampouco se abriu. Em compensação, aconteceu o que parecia um milagre: dois armadores [4] , Guilherme Porco e Hugo Ferro, puseram sete navios à disposição dos jovens. Era uma armadilha: dois navios naufragaram – em sua memória, o papa Gregório IX mandou erguer em 1227, a Igreja dos Novos Inocentes, em uma alusão às crianças mortas por ordem de Herodes; outros cinco atingiram Alexandria, no Egito, Bougie, na Tunísia, onde todos foram vendidos como escravos. (...)

Adaptado de Corrado Pallenberg in Visão, São Paulo, 22/08/1983.

[*] Este texto não é para ser estudado para a A.E. Ele é somente um texto de apoio.
[2] Pregação feita estilo familiar e simples ou popular sobre o Evangelho.
[3] A lenda do Flautista de Hamelin se inspira na Cruzada das Crianças e na Peste Negra. No conto de fadas, Nikolaus, o flautista mágico, se oferece para livrar a cidade dos ratos em troca de uma recompensa. Toca sua música e os ratos o seguem sendo conduzidos para um rio, no qual se afogam. Como não recebe a recompensa esperada, o jovem volta em uma noite, toca sua música e as crianças o acompanham para nunca mais retornarem em algumas versões, ou para somente voltarem quando os pais pagam um imenso resgate em ouro. É o castigo para a promessa não cumprida dos adultos.
[4] Pessoa ou firma que, à sua custa, equipa, mantém e explora comercialmente embarcação mercante, podendo ser ou não o seu proprietário.