terça-feira, junho 10, 2008

2º BIMESTRE: Erasmo de Rotterdam — A crítica dentro da Igreja


Durante os séculos XV e XVI, inúmeros padres e monges levantaram sua voz criticando a Igreja e propondo a convocação de concílios para encaminhar reformas. Muitos deles criticaram severamente a Igreja, mas permaneceram sempre dentro dela, sem chegar ao rompimento com Roma. Erasmo de Rotterdam (1466-1536) foi um desses homens. Desde cedo participou do movimento dos Irmãos da Vida Comum, que buscava um ideal de piedade e desprezo ao mundo. Posterior¬mente, tornou-se monge agostiniano, bacharel e professor de Teologia. Erasmo combatia a venda das indulgências e o comércio de objetos sacros (simonia):

Que diria Jerônimo se pudesse ver o leite da Virgem exibido por dinheiro, recebendo tanta veneração quanto o corpo consagrado de Cristo; os óleos milagrosos; os fragmen¬tos da verdadeira cruz, suficientes, se fossem reunidos, para fabricar um grande navio? Aqui temos o capuz de São Francisco, ali a saia de Nossa Senhora, ou o pente de Santa Ana... não apresentados como auxiliares inocentes da religião, e sim como a substância própria da religião — e tudo pela avareza dos padres e hipocrisia dos monges que brin¬cam com a credulidade do povo. (Erasmo, Novum Testamentum omne, diligenter ab Erasmo Rot. recognitum at Emendatum, 1518. Apud Will Durant, op. cit., p. 239.)

Erasmo defendia a tradução da Bíblia para as línguas nacionais e sua leitura por todos os cristãos:

Gostaria que a mais fraca mulher lesse os Evangelhos e as Epístolas de São Paulo [...] Gostaria que essas palavras fossem traduzidas para todas as línguas, afim de que não só os escoceses e irlandeses, como também turcos e sarracenos pudessem lê-las. Anseio por que o lavrador as cante para si mesmo quando acompanha o arado, o tecelão as murmure ao som de sua lançadeira, que o viajante iluda com elas a monotonia da jornada. (Id.,ibid.,p. 240-1.)
O elogio da loucura

Muitos de seus escritos foram redigidos em tom satírico, entre eles O elogio da loucura, em que se louva a necessidade da loucura e a tolice da sabedoria no mundo:


Rivais dignos dos príncipes, os soberanos pontífices, os cardeais e os bispos [...] Hoje, os bispos apenas se preocupam em apascentar-se a si próprios, deixam o cuidado do rebanho a Cristo. Esquecem que a palavra bispo significa trabalho, vigilância, solicitude. Servem-se apenas de tais qualidades quando pretendem recolher dinheiro. [...] Se os Sumos Pontífices, que estão no lugar de Cristo, se esforçassem por imitá-lo na pobreza, nos trabalhos, na sabedoria, no sofrimento e no desprezo pelas coisas terrenas, não seriam eles os mais infelizes de todos os homens ? Quantas comodidades não perderiam, se um dia a sabedoria os penetrasse. Vede quantas riquezas, honras, troféus, ofícios, dispensas e impostos, indulgências, cavalos, mulas, guardas e prazeres. Ora, tudo deveria ser substituído pelos jejuns, vigílias, lágrimas, orações, sermões, estudos e penitências e mil outros incómodos enfadonhos. (Erasmo, O elogio da loucura, 1511, p. 117-9.)

Um ano após a morte do papa Júlio II, Erasmo publicou um diálogo de São Pedro com o papa na tentativa de entrada no céu:

Júlio: Basta. Sou Júlio, o ligurino*, P.M. ...
Pedro: P.M.! Que é isso? Pestis máxima ?
J: Pontifex Maximus, seu velhaco.
P: Se você é três vezes Maximus... não poderá entrar aqui se não for também Optimus.
J: Impertinência! Você, que não foi mais do Sanctus em todas essas eras — e eu Sanctissimus, Sanctissimus Dominus, Sanctitas, a própria Santidade, com bulas* para prová-lo.
P: Não há diferença entre ser santo e ser chamado Santo?... Deixe-me olhar um pouco mais de perto. Hum! Sinais de impiedade em abundância... Batina de padre, mas armadura ensanguentada por baixo; olhos ferozes, boca insolente, testa impenetrável, corpo cheio de cicatrizes de pecados, hálito carregado de vinho, saúde esgotada pela libertinagem. Ai, ameace quanto quiser, vou dizer-lhe quem é... É Júlio, o Imperador que voltou do inferno...
[...] P: Tem de mostrar seus méritos antes de entrar.
J: Que quer dizer por méritos?
P: Ensinou a verdadeira doutrina ?
J: Eu não. Estive ocupado demais com a guerra. Há monges para cuidar da doutrina [...]
P: E a respeito de Ferrara ?
J: [...] Eu queria o ducado de Ferrara para um filho que tinha, em que se poderia confiar que seria fiel à Igreja, e que acabava de apunhalar o cardeal de Pavia.
P: Como?Papas com esposas e filhos?
J: Esposas? Não, esposas não, mas por que não filhos?
P: Não haverá meio de remover um mau papa ?
J: Absurdo! Quem pode remover a mais alta de todas as autoridades ? Um papa só pode ser corrigido por um Concílio Geral, mas nenhum Concílio Geral pode ser convocado sem o consentimento do papa. Portanto, ele não pode ser deposto por crime algum. [...] Então, não quer abrir o portão?
P: Antes para qualquer outra pessoa do que para gente como tu...
J: Se não ceder, tomarei seu lugar à força. Neste momento estão fazendo uma bela destruição lá embaixo; em breve terei 60 000 fantasmas atrás de mim.
P: Oh, homem miserável! Oh, miserável Igreja! Não me surpreende que agora tão poucos se apresentem aqui pedindo para entrar, quando a Igreja tem tais governantes. [...]
(Erasmo, Iulius exclusus, 1514. Apud Will Durant, op. cit., p. 235-7.)

Fé e razão

No fundo, as idéias de Erasmo não constituem uma nova doutrina, mas uma tendência a uma religião simplificada, combinando fé e razão, baseada nas Escrituras, onde o livre exame das questões teológicas é possível a uma elite. A fé e a esperança nas capacidades do homem representam uma influência muito grande do humanismo renascentista, do qual Erasmo é um dos expoentes. O discurso de Erasmo tinha muito prestígio intelectual e encontrava audiência junto a papas, soberanos, intelectuais, homens de Estado, além de penetrar difusamente nos segmentos burgueses. Entretanto, tinha pouca penetração nos meios populares. No que se refere à salvação do homem, Erasmo defendia o livre-arbítrio:
[...] a verdade das Escrituras mostra a liberdade do homem de escolher entre o bem e o mal de acordo com sua vontade interior. A alma humana possui um poder de julgar e um poder de escolher. O pecado de Adão corrompeu a vontade e a inteligência humanas, mas não as anulou. [...] mesmo sem a graça podemos dirigir-nos para o bem, realizar obras moralmente boas e que merecem de Deus uma Graça santificadora. (Erasmo, De libero arbítrio, 1524. Apud Will Durant, op. cit., p. 363.)

De acordo com o pensamento renascentista, Erasmo afir-lava a bondade natural do homem:

Há uma razão em todo homem, e em toda razão uma tendência para o bem [...] O cachorro nasce para caçar; o pássaro para voar; o cavalo para correr; o boi para lavrar; assim o homem nasce para amar a prudência e as boas obras. A natureza do homem é uma inclinação, uma propensão profundamente instintiva para o bem. (Erasmo, De pueris statim ac libera-lites instituendis, 1529. Apud Will Durant, op. cit., p. 363.)
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Viajando muito pela Europa e pelo Sacro Império Romano-Germânico, Erasmo conheceu as idéias de Lutero. A 9 de setembro de 1517, Erasmo escreveu de Antuérpia, onde se encontrava, ao Cardeal de York, e numa das frases da carta diz: "Nesta parte do mundo temo que se esteja preparando uma grande revolução".

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