Já assisti
Ágora tantas vezes que é uma vergonha não ter resenhado ainda, eu até tinha feito um
post quando soube do filme, tinha ficado super contente, e esperei ansiosamente por ele nos cinemas. A estréia nunca aconteceu. Assisti Ágora ou Alexandria a primeira vez sozinha em casa, depois que desisti de esperar que estreasse nos cinemas brasileiros (*vergonha terem mandado um filme tão bom direto para DVD*), já exibi para duas turmas da faculdade e para o terceiro ano no Colégio Militar, já revi pedaços que acho mais interessantes. Na verdade, Ágora é um filme que entrou na lista dos meus favoritos, mesmo com vários problemas históricos, mesmo com várias críticas, considero o filme excelente. Aliás, a película de Alejandro Amenábar é o melhor filme querem conheço para discutir história da ciência, afinal, as limitações impostas por dogmas não são um problema somente no campo religioso.
Para quem não conhece a história do filme, ele começa em Alexandria do Egito, a segunda cidade mais populosa do Império Romano, no fim do século IV, quando Teodósio I transforma o cristianismo em religião oficial do Estado. Hyphatia, filósofa, matemática, astrônoma e médica (*embora o filme não comente isso*), vivia e ensinava na prestigiosa escola da cidade. É através dos olhos de Hyphatia e de seu escravo Davos que assistimos a ruína do que tinha sobrado da velha ordem pagã, que luta para não morrer, e o nascimento de um mundo cristão cada vez mais intolerante. Davos é apaixonado pela filósofa, assim como Orestes, seu aluno e futuro prefeito da cidade. Depois da trágica destruição da escola de filosofia, o filme dá um salto no tempo e nos coloca em uma Alexandria cristã, nela Davos se tornou membro de um grupo de fanáticos cristãos, os parabolani, que estão a serviço do bispo, Cirilo, que quer ser o maior poder e autoridade da cidade, e para isso, precisa derrotar o prefeito. A forma mais direta é roubar dele a pessoa que mais ama, sua amiga e antiga mestra Hyphatia. O final do filme, claro, é trágico...
Como é baseado em uma história real, não é spoiler dizer que Hyphatia
morre no final do filme. Ela é considerada por muitos a primeira mártir pagã e uma das temáticas chave do filme é a intolerância religiosa que destrói viras e o trabalho científico da protagonista. Primeiro, a intolerância de pagãos contra cristãos, quando esses já se tornavam uma força, depois, dos últimos contra quem quer que não aderisse a sua fé. A expulsão dos judeus ilustra bem a questão. O filme também mostra como o Império – especialmente no Ocidente e Norte da África – vai enfraquecendo e as lideranças religiosas, como o Bispo Cirilo, tentam usurpar o poder civil. É aí que se dá o embate com o prefeito e a trágica morte da protagonista.
Os três protagonistas do filme estão muito bem.
Rachel Weiz é uma Hyphatia que oscila entre o brilhantismo e o abatimento diante do desafio de entender as órbitas dos planetas e seu movimento com tantos dogmas filosóficos e científicos a atrapalhá-la. Ela também é bela – e não envelhece, como virou regra nos filmes e novelas – e tem atitude, coragem e humanidade. Mas o bom do filme é que não a livraram dos preconceitos da época, vide sua relação com Davos. Só me decepciona o final, mas eu falo disso mais tarde. O Orestes de
Oscar Isaac faz o melhor papel masculino do filme para mim. A interação dele com Hyphatia, a paixão que ele transmite no olhar, o desespero do final... E a cena em que ele acha que Hyphatia vai dizer que queria poder amá-lo e descobre que ela está falando de seus planetas é ótima. Adoro a expressão dele. Na verdade, acho o Oscar Isaac lindo no filme, ele fica perfeito de toga. E há o Davos de
Max Minghella, uma personagem cheia de nuances. Sua inteligência negligenciada e desprezada por ser escravo, sua angústia, a paixão não correspondida por sua senhora, a conversão e a adesão ao fanatismo cristão, ele desce ao inferno, literalmente. Meus alunos e alunas no Colégio Militar torciam por ele, a empatia com seu drama foi imediata. Queriam que ele terminasse com Hyphatia. Tadinhos! Não conheciam a história ...
A seqüência da destruição da Academia e da Biblioteca é muito emocionante, dramática e bem dirigida. A câmera vira de ponta à cabeça na cena em que livros e objetos de estudo são destruídos, mostrando que o mundo todo está enlouquecido. Aquele mundo, pelo menos... A analogia entre as massas intolerantes e formigas que vão de lá para cá também é muito bem feita. A fotografia e o figurino – simples e elegante – são trunfos do filme que foi o mais caro feito na Espanha até então. E o elenco é multirracial, nada de atores e atrizes brancos preenchendo todos os papéis. Temos a diversidade étnica do Império Romano e do Egito na tela. Isso é positivo, já que o branqueamento parece ser quase a regra para a maioria dos filmes. Ágora, no entanto, não preenche a
Bechdel Rule. Hyphatia é uma personagem solitária, a mulher filósofa incompamas poderiam ter colocado pelo menos outra personagem feminina. Todas as mulheres fora Hyphatia são figurantes sem falas. O positivo da composição do elenco não é contrabalançada com uma um maior número de personagens femininas, mesmo que fosse somente para que Hyphatia brilhasse ainda mais.
E chegamos às coisas que me incomodam. Sinesius, um dos discípulos de Hyphatia, era cristão (no filme, desde a juventude, na vida real, não) e tornou-se bispo. Trata-se de uma personagem histórica. Quando entramos na reta final do filme, ele assume um tom anti-cristão e nem falo só da questão da destruição da biblioteca já que ninguém sabe verdadeiramente quem e quando foi destruída, se de uma vez ou em partes. Sinesius nunca traiu Hyphatia, na verdade, ele já estava morto quando de seu assassinato. Suas últimas cenas são uma difamação. Ora, poderiam ter criado uma personagem para cumprir essa função, não precisavam infamar uma personagem histórica. Outro problema é o prefeito. O original enfrentou o bispo e dizia com orgulho que tinha sido batizado pelo patriarca de Constantinopla, que estava acima do líder eclesiástico de Alexandria. No filme, Orestes é cristão de conveniência; até aí, OK, muitos eram, mas a forma como a personagem é massacrada no final é outra traição, uma forma de ilustrar, talvez, o quanto os cristãos eram visar... Ele também abandona Hyphatia ao ser reduzido à impotência por Cirilo e Sinesius. Eu odiei aquilo, pois o prefeito nunca traiu a amiga. E Hyphatia se entrega para morrer, afinal, seu mundo tinha sido destruído... Em nenhuma das fontes ela se entregou para ser massacrada. Ela foi arrastada, ela lutou... Apresentá-la como um animal indo para o sacrifício pode ter um efeito dramático (*uma aluna chorou copiosamente no final do filme*), mas não é fiel à personagem, que, provavelmente, era uma mulher de grande coragem, dignidade e já idosa quando destroçada pela turba de cristãos.
Mas, ainda que com essas ressalvas – e outras mais – eu amo Ágora. Aprendi muita coisa com o filme. Por exemplo, não sabia quem eram os temíveis parabolani. E é um material ótimo para se discutir história da ciência. Eu sinto a angústia de Hyphatia, lamento que ela não tivesse condições de deduzir a existência da gravidade, é desesperador o peso dos dogmas que se travestem de ciência ou a apatia. Tudo isso foi muito bem colocado em Ágora. Hyphatia no filme é uma sonhadora em tempos sombrios, tempos de fanatismos, tempos em que para ser um espírito prático como Orestes é preciso renunciar à imaginação. Enfim, recomendo muito este filme, muito, muito mesmo! Não se trata de um filme feminista, não vejo Hyphatia como uma defensora das liberdades femininas. Ela queria viver para a sua ciência em uma Alexandria cada vez mais obtusa e dominada por outras questões, como as cizânias religiosas. Triste o mundo em que as pessoas competem entre si para saber quem é o mais fanático... Esse é o caso da Alexandria do filme e, infelizmente, do nosso mundo de hoje.