Sexta-feira, assisti Corações Sujos (汚れた心 – Kegareta Kokorō), filme baseado no livro do jornalista Fernando Morais sobre a organização ultranacionalista Shindo Renmei (臣道連盟 – Liga do Caminho dos Súditos). Quando o filme foi anunciado, criei grandes expectativas em relação a ele, afinal, havia material de sobra para fazer um grande filme, que pudesse jogar um pouquinho de luz sobre um dos capítulos trágicos da imigração do Brasil. O filme, no entanto, só consegue ser mediano. Opta por um recorte intimista sem se importar muito o cenário histórico, algo fundamental, tomando para si ares grandiosos que não tem. E a culpa não é dos atores e atrizes, talentosos e bem escolhidos, mas da direção de Vicente Amorim. Daria para fazer dez ou mais filmes sobre a Shindo Remei, ou sobre as políticas xenófobas Varguistas e eu espero que Corações Sujos não seja encarado como uma obra definitiva, mas como uma abertura para explorar episódios dolorosos da História do Brasil.
O filme corações sujos se passa em 1946, em uma cidade do interior de São Paulo que tem nos japoneses e seus filhos a maioria da população. Cerceados dos mínimos direitos – ir e vir, falar o japonês em público, ouvir rádio, ler jornais ou revistas em sua língua, etc. – a comunidade carece de informações sobre o fim da guerra no Pacífico. Neste contexto floresce uma organização secrete ultranacionalista chamada Shindo Renmei. Seus membros se negam a acreditar que o Japão perdeu a guerra, defendem a divindade do imperador e punem com a morte os “corações sujos”, isto é, os membros da comunidade que se neguem a acreditar na “verdade”. É neste contexto conturbado que vivem as protagonistas, Takahashi (Tsuyoshi Ihara), o fotógrafo da comunidade, e sua esposa Miyuki (Takako Tokiwa), que dá aulas de japonês às escondidas para as crianças. A vida dos dois se transforma em tragédia quando o pacato Takahashi se torna um tokkotai, um assassino à serviço dos ideais da Shindo Renmei.
Enfim, se você for assistir Corações Sujos tenha em mente que não e um filme sobre o Shindo Renmei, ou sobre as leis xenófobas que oprimiam não somente os japoneses, mas outras comunidades imigrantes. O filme é sobre o drama pessoal de um homem, Takahashi, e como ele é cooptado por uma organização radical, que misturava religião e política, sendo levado a cometer vários crimes. Corações Sujos é, também, o filme sobre uma mulher que ama e que tem que escolher entre o marido e sua consciência. Em nenhum momento Corações Sujos me pareceu um filme histórico, trata-se de um drama intimista sobre sentimentos como honra, vergonha, amor, fidelidade, culpa norteados pelos valores da cultura nipônica tradicional. Infelizmente, como o filme parece almejar o rótulo de “genial” e “cult”, a coisa se perde.
Não é um filme ruim, não é um Olga, por exemplo, mas é um filme que abusa de cenas longas, de enquadramentos de câmera que se supões poéticos. Mesmo a distorção da imagem, que funciona como uma metáfora da visão distorcida de mundo dos membros do Shindo Remei, termina por ser cansativa já que é usada de novo e de novo à exaustão. As únicas imagens que funcionam bem são as menções à bandeira do Japão em vários momentos. Especialmente no sangue sobre o chão, que Miyuki se esforça por limpar, e no sangue sobre o algodão depois do assassinato do líder da cooperativa, Sasaki, interpretado de forma muito convincente por Shun Sugata. A morte do Coronel Watanabe também foi uma cena muito bem executada e bonita até, assim como o desespero de Miyuki e suas galinhas notívagas...
Mas vejam que eu pontuei cenas, faltou coesão narrativa ao filme, faltou contextualização, faltou delinear com clareza o que foi o Shindo Renmei, que não se tratava de uma empreitada de um grupo de colonos japoneses em uma cidadezinha, mas que era algo muito maior. Faltou mostrar o papel da polícia brasileira. Porque o Du Moscovis aparece no trailer sugerindo uma grande participação e, no filme, ele mal dá as caras. Trata-se de figurante de luxo. O DEOPS (Delegacia Especializada de Ordem Política e Social) desbaratou o Shindo Renmei. Em Corações Sujos fica parecendo que a polícia olhava a matança e ficava com aquela postura “eles que são amarelos que se entendam”. Há relatos de época de delegado pedindo apoio do Exército.
No filme, o delegado e sua tropa são passivos boa pare do tempo. O tal cabo Garcia, que tinha toda a pinta de sádico racista, só aparece no início para detonar o conflito, fazendo parecer que a Shindo Renmei tinha aparecido ali, naquele momento. A polícia getulista – já era Governo Dutra, coisa que o filme nem busca situar, mas o pessoal era o mesmo – não era de dar refresco, não. Aqueles sujeitos que tentaram atacar a delegacia iriam apanhar muito... Aliás, o único negro que aparece no filme, um advogado, está lá só para que Du Moscovis use uma lapidar frase racista, algo como “Só no Brasil, para um monte de amarelos serem soltos por um advogado preto”. Mas como a personagem dele não é desenvolvida, não dá para saber até que ponto ele estava despejando sua frustração, ou era racistão de carteirinha...
O Coronel Watanabe, o “vilão” da história, é inspirado no fundador da Shindo Renmei, o Coronel Junji Kikawa. Interpretado com muita dignidade pelo ator Eiji Okuda, a personagem consegue passar toda aquela arrogância dos que tem certeza de que estão com a Verdade, assim mesmo, com “V” maiúsculo. Um sujeito como ele seria capaz das atrocidades cometidas em filmes como Flores do Oriente. Watanabe não suja suas mãos, ocupando lugar de destaque na comunidade, ele é respeitado por ser nobre, por ser velho, por ser coronel. E consegue cooptar os jovens e intimidar os adultos com sua propaganda da vitória japonesa. Só que mesmo aí o filme fracassa, porque tenta vilanizar um sujeito que era norteado pela honra, ainda que sob uma perspectiva distorcida.
Houve durante a existência do Shindo Renmei picaretas, os lero-lero, que se aproveitaram da boa fé dos imigrantes, vendendo-lhes terras em regiões conquistadas pelos japoneses, como a China, Filipinas, Coréia, ou no Japão. Esses caras levaram muitos japoneses crédulos à falência e, alguns, terminaram se suicidando e eles nada tinham a ver com a organização, somente percebiam o quanto ela poderia facilitar seus negócios. No filme, para aumentar a vilania do Coronel, ele é apresentado como alguém ligado a esses sujeitos. E a coisa é jogada, sem desdobramentos e absolutamente contraditória com a personagem, cuja conduta, repito, se pautava por rígidos princípios de honra. Foi um recurso pobre para desprezarmos o Coronel, como se a empatia por Takahashi, Miyuki e o chefe da cooperativa e sua família não bastassem. O que foi aquela cena do Coronel indo fazer uma oração fúnebre na casa do dono da cooperativa antes do homem ser morto? Depois disso, a gente sente vontade de ver o velho – que me lembrou a D. Dorotéia de Gabriela – como um monstro.
O ponto positivo é que saí do cinema e comprei o livro Corações Sujos. Primeiro, porque já deveria ter lido mesmo; segundo, porque o filme pareceu não estar interessado em discutir o significado da organização. Trata-se, repito, de um filme sobre relações humanas, sobre sentimentos que nos arrastam, sobre pressão social. Só que se vendeu como um filme sobre a Shindo Renmei e sobre um capítulo muito pouco conhecido da História do Brasil. Eu nunca ouvi falar de Shindo Renmei na faculdade. Eu nunca encontrei uma linha sobre ela em um livro didático. Nada! Soube pela internet, pelas matérias sobre o livro do Moraes, pela propaganda do filme e, sim, fui até a internet em busca de material, desde a Wikipedia até dissertação de mestrado. Aliás, para quem quiser ler um artigo bem instrutivo sobre o grupo e imaginar o quanto de material havia para se fazer um grande filme, é só clicar em Realidade alterada: o poder da Shindo Renmei. Também recomendo o texto Rompendo silêncio, que fala de forma bem didática das leis racistas e do preconceito contra os japoneses. Não é difícil entender como a Shindo Renmei conseguiu crescer tanto, matar e aterrorizar tanta gente.
Enfim, resta comentar sobre a Bechdel Rule. O filme cumpre? Acredito que, sim. Temos a professora Miyuki que é co-protagonsita do filme e uma mulher ativa dentro das suas condições e produção. Ela é professora, membro respeitado da comunidade, esposa que apoia o marido, mas que tem opiniões próprias e opta por ser fiel a sua consciência. De novo, uma mulher forte não precisa estar armada para a guerra e sair socando gente por aí. Miyuki é forte a sua maneira. Temos a personagem Naomi defendida pela menininha Kimiko Yo. Fofa e talentosa, ela ajuda Takahashi em seu trabalho como fotógrafo até que a Shindo Renmei os separa. Há, também, a mãe de Naomi, Akemi Sasaki (Celine Fukumoto), mulher de fibra e que se desespera quando sabe que o marido é um homem marcado e também disposto a morrer pelo que é certo, nesse caso, a verdade sobre a guerra e a defesa dos colonos. É ela quem embolacha o Coronel em uma cena memorável. E há outra menininha, filha de Aoki, o primeiro assassinado, que tem nome. Talvez aparente que as conversas delas são sobre os homens que amam e isso invalida a regra, mas acredito mais que as conversas das mulheres ultrapassem o pessoal, e resvalem também em questões como honra, dever, fidelidade e consciência. Fora, claro, que elas são mostradas como elementos ativos e participantes da vida da colônia.
Enfim, Corações Sujos é um filme que poderia ser muito bom, mas que tem aspirações de grandeza que tolheram o desenvolvimento da narrativa. Uma direção firme, cenas mais enxutas, e o interesse real de fazer um filme sobre a Shindo Renmei poderiam ter transformado o filme em um dos melhores produtos brasileiros do ano e um provável candidato nosso ao Oscar. Mas não é nada disso. Não é um thriller, como já vi em algumas resenhas por aí, nem é um romance. Trata-se de um incômodo meio termo, de algo que deseja parecer maior do que é realmente.
Nenhum comentário:
Postar um comentário